‘Guerra do tráfico’ não perdoa nem os animais: Comando Vermelho mata 10 cães em Pirajá

‘Guerra do tráfico’ não perdoa nem os animais: Comando Vermelho mata 10 cães em Pirajá

Até onde vai a crueldade do Comando Vermelho (CV)? Para evitar que sejam descobertos, integrantes do facção carioca já mataram a tiros pelo menos 10 cães no início deste mês, no bairro de Pirajá. O ataque ocorre porque o latido dos animais denuncia os passos dos “bondes” (grupo de homens armados) dentro do Parque São Bartolomeu para atacar bairros da região Suburbana, que têm a presença do Bonde do Maluco (BDM). Entre eles, Mirantes de Periperi, que vem sendo alvo do CV há quase 45 dias, e Rio Sena.

O assassinato dos animais aconteceu na região do Conjunto Pirajá I, na localidade conhecida como Pantanal – o nome é dado pela proximidade das moradias ao Parque São Bartolomeu, um dos grandes remanescentes da Mata Atlântica em área urbana do Brasil, que reúne quatro cachoeiras, manguezal e a barragem junto ao Rio do Cobre. E esse abeiramento é o “x” da questão. Segundo moradores, existem cerca de 40 homens do CV que vivem dentro da mata fechada, com fuzis de visão noturna, para atacar entre 1h e 4h da madrugada, quando o policiamento é reduzido na região.

“Mesmo na mata, o barulho deles (traficantes) andando é percebido pelos cães, que latem muito. A reação dos animais impede o ataque surpresa, porque o barulho chega também do lado de lá (Suburbana). Certa vez, o pessoal do Comando Vermelho foi recebido a tiros, porque o BDM já estava preparado. Foram muitos tiros dos dois lados. O CV recuou para o parque. Neste dia, antes do tiroteio, os cães não pararam de latir”, contou um morador.

Segundo ele, as mortes dos animais aconteceram no início do mês, no intervalo de uma semana. Coincidentemente, foi no mesmo período que o CV  intensificou seus ataques na região, principalmente, em Mirantes de Periperi. Para chegar à localidade, os integrantes do CV costumam fazer dois percursos:  vão direto pela mata até o destino ou se embrenham pela floresta até Rio Sena e, de lá, chegam em Mirantes.

“Todos os cães dormiam na rua, eram todos vira-latas, mas cuidados por nós, com comida, água, remédio. Atiraram neles e levaram os corpos para a mata. Provavelmente, enterraram por lá. Caramelo foi um dos poucos que eles não levaram o corpo e um vizinha fez o enterro no quintal”

Cerca de 40 traficantes do CV estão escondidos no Parque São Bartolomeu

 

Cerca de 40 traficantes do CV estão escondidos no Parque São Bartolomeu Crédito: Eduardo Bastos/CORREIO

Ainda de acordo com o morador, que pediu para não ser identificado, os cachorros circulavam pelas residências que beiram o parque. “O que eles fazem é uma tremenda monstruosidade. Agora, todo mundo aqui está com medo até de sair com os seus cães. O pavor maior é à noite. As pessoas temem que as casas sejam invadidas porque, mesmo escondidos, os animas latem. Uma vizinha está dormindo todo dia com a cadela Poodle debaixo da cama. Se a situação não mudar, ela já disse que vai dar a cachorrinha”, relatou o morador. “ Eles não aceitam nada que chame a atenção. Assim como não querem a polícia, não querem nada que faça barulho. Apesar de todo mundo estar chocado, ninguém pode falar nada. Já disseram: se abrir a boca, morre”, completou.

 

Tiros e facadas

O primeiro Corpo de Bombeiros Voluntários da Bahia (Brigada K9), que realiza resgates e primeiros socorros a animais em situação de maus-tratos ou de rua em Salvador e Região Metropolitana (RMS), não registrou nenhuma ocorrência de morte de cães pelo tráfico de drogas em Pirajá, porém informou que, no ano passado, cinco cachorros foram assassinados na capital por traficantes em situações semelhantes. “Infelizmente, essa barbaridade não é um fator isolado. Aconteceu no Alto do Saldanha, em Brotas, em Águas Claras e em Paripe . Cometeram essas atrocidades porque os bichos latiam à noite. Fomos nesses locais, mas só encontramos rastros de sangue. Um morador ou outro dizia que os animais foram assassinados e que os criminosos sumiam com os corpos para não chamar a atenção da polícia”, declarou o comandante da Brigada K9, Emerson França .

O comandante contou também que cães de traficantes são exterminados por grupos rivais a tiros ou facadas. “Esses animais, em sua maioria pitbulls, são usados para fazer a segurança de depósitos de drogas e armas. Quando a polícia dá de cara com eles, aciona a brigada, a gente recolhe o animal e os policiais fazem a apreensão do material. Mas rivais, não. Executam os bichos sem piedade. Foi assim no Lobato, Periperi, Águas Claras e Mata de São João”, relatou França.

Já um policial da Companhia de Polícia de Proteção Ambiental da Bahia (Coppa) relatou à reportagem que, em setembro do ano passado, um cão não resistiu aos ferimentos depois de ter sido baleado por traficantes no bairro de Valéria. “O animal latia, denunciando o posicionamento deles na mata. Isso foi logo quando houve a morte do policial federal e os criminosos eram caçados na vegetação pelo Bope (Batalhão de Operações Policiais Especiais) e pelo Batalhão de Choque”, contou o PM. Em setembro de 2023, após a morte do policial federal Lucas Caribé Monteiro de Almeida, baleado por integrantes de uma facção durante uma megaoperação, uma força-tarefa, com agentes da força de segurança de várias unidades locais e nacionais, tomou conta da região.

O militar disse que a Coppa, unidade da Polícia Militar da Bahia (PM-BA), não foi acionada para nenhuma ocorrência em Pirajá, mas  que não se espanta se essas perversidades de fato aconteceram. “Quem vive nestes locais é reprimido, pois corre risco de morte”. A Coppa é responsável pelo policiamento ostensivo para a proteção da biodiversidade, no entanto, atua também em situações que envolve violência contra animais domésticos. “É atuação nossa também, porque maus-tratos está previsto na Lei de Crimes Ambientais”, explicou.

Pesquisador do Núcleo de Estudo da Violência da USP (NEV-USP) e especialista no estudo das maiores organizações criminosas do país, o CV e o PCC (Primeiro Comando da Capital), o escritor e jornalista Bruno Paes Manso disse que não tem conhecimento de outros casos de animais mortos pelo tráfico, porém, afirmou que nada o surpreende.

“Esses caras começam a definir suas ações a partir do poder que exercem nas comunidades, ou seja, é a tirania. Eles se colocam como Deus, por isso que não duvido que tenha acontecido. Acredito que aqui também ocorra, porém, em São Paulo, essas coisas são mais discretas, para que a polícia não tome conhecimento”, pontuou Manso.

De acordo com uma dona de casa da região, os criminosos costumam sair da vegetação para “oprimir os moradores”. “Eles entram nas casas e as pessoas são obrigadas a dar comida, roupa, tudo o que eles querem. Xingam, batem, ameaçam as mulheres de estupro e muito mais. E não podemos falar nada”, declarou.

 

Escola

Os cães mortos no Pantanal pelos traficantes eram vistos também nas arredores da Escola Municipal Adilson de Souza Gallo, na Rua Rio de Contas, Conjunto Pirajá I. “Alguns ficavam quietos, em frente à escola, e brincavam com as crianças. Quando souberam da notícia, os alunos ficaram bastante tristes e amedrontados com a crueldade”, relatou um morador.

Escola tem aulas são interrompidas por causa de tiroteios diários

Escola tem aulas interrompidas por causa de tiroteios diários Crédito: Marina Silva/CORREIO

O fundo da escola dá para parte dos 75 hectares do Parque São Bartolomeu. “Quando começa a guerra deles lá, fico com o coração na mão. Tenho dois filhos que estudam lá e é sempre assim: o pessoal do parque quer tomar, mas os rivais do Rio Sena e Mirantes de Periperi não deixam e atiram também. É chuva de bala para todos os lados. As nossas crianças e os professores ficam em pânico. Uma bala perdida dessas pode achar inocentes”, disse uma moradora.

Segundo ela, entre os dias 29 de abril e 17 de maio, as aulas foram suspensas na escola. “A direção mesmo suspendeu, porque estava demais, não dava para garantir a segurança de ninguém. Agora, ficamos sabendo que a escola será gradeada”, contou. Procurada, a Secretaria Municipal de Educação (Smed) confirmou que os 304 alunos da Escola Adilson de Souza Gallo ficaram sem aula por cinco dias, entre os meses de abril e maio, e também a instalação das grades, já programada para este mês. “Todas as janelas e portas serão gradeadas”, diz a nota.

Outra mãe avalia que a grades devem aumentar a sensação de segurança. “Mas não é a solução do problema. É preciso outras medidas, como uma varredura na mata. A polícia tem que cercar o local e prender todo mundo. A situação chegou a esse ponto porque o Comando Vermelho está na mata”, disse.

Sobre a segurança  na instituição de ensino, a secretaria explicou que a “escola em questão tem funcionamento até às 17h, portanto, cabe apenas um agente de portaria, profissional que controla o acesso de alunos e colaboradores na unidade escolar, vale ressaltar que ele não faz a segurança da instituição”.

Já a Guarda Municipal Civil (GMC) informou que atua diariamente com dez viaturas, exclusivas para o patrulhamento escolar. “A atuação através de patrulhamento visa o monitoramento das centenas de escolas existentes na cidade, ocorrendo inclusive reforço em unidades de ensino que tenham a solicitação do serviço. No caso em questão, a suspensão das aulas está ligada à insegurança no bairro e não na Escola, visto que a GCM não foi demandada para garantir reforço nessa unidade”, encerra a nota.

Outros posicionamentos

Em relação aos crimes contra os cães relatados acima, a Diretoria de Proteção Animal, órgão da Secis (Secretaria Municipal de Sustentabilidade, Inovação e Resiliência), informou não ter registros de denúncias desse teor. Já a Guarda  Civil Municipal disse que só atua no resgate de animais silvestres.

O Centro de Controle de Zoonoses (CCZ), órgão vinculado à Secretaria Municipal da Saúde (SMS), informou que não há registro de maus-tratos e acrescentou que “crimes contra animais é denunciado diretamente à Polícia Civil (PC)”.

A reportagem procurou as polícias Civil (PCBA) e  Militar (PMBA) e a Secretaria de Segurança Pública (SSPBA), mas até o fechamento dessa matéria nenhum dos órgãos se posicionou sobre as denúncias.

Subúrbio vive momentos de terror

Paredes cravejadas com tiros de fuzil, casas pichadas com inscrições em referências à facção carioca. Desde que o CV intensificou seus ataques na região de Subúrbio, no início de abril, moradores não têm um minuto de paz. Os confrontos com o BDM deixaram ruas desertas, em especial a Baixada de Mirantes, epicentro dos embates.

Os ônibus suspenderam a circulação em parte de Mirantes, no último dia 12, por conta de uma operação policial na região. Segundo a secretaria de Mobilidade (Semob), os coletivos que fazem a linha 1620 – Alto de Coutos/ Paripe X Hospital do Subúrbio (Via Mirantes de Periperi) deixaram de circular na Rua Ambrosina Arruda. A Smed também informou que, por conta da sensação de insegurança, a Escola Municipal Mirantes de Periperi teve as atividades suspensas para os 365 alunos.

No dia 15 de abril, moradores ficaram horrorizados com a localização de uma cabeça humana na Rua do Curió. No dia seguinte, um policial do Batalhão de Operações Especiais (BOPE) da Polícia Militar foi baleado durante uma troca de tiros com traficantes no bairro. Ele foi atingido na perna e socorrido para uma unidade de saúde da região. No dia, a PM capturou cinco suspeitos e apreendeu vários itens usados pelos criminosos como fuzil, pistolas e munições.

De lá para cá, além dos tiroteios, áudios e mensagens com ameaças de “arrastão” circulam nos bairros dominados pelo BDM. Com intimidações, moradores de Mirantes de Periperi e também de Altos de Coutos passaram a retornar mais cedo para suas casas.

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